Economia
Avião C919 da China enfrenta turbulência no Brasil
Forte dependência do jato chinês C919 em tecnologia, motores, aviônica e softwares essenciais dos EUA e da Europa expõe o alcance global limitado e a cadeia de suprimentos frágil de seu fabricante.
![Um jato de passageiros C919, desenvolvido domesticamente pela China, faz demonstração de voo durante o Zhuhai Air Show, na província de Guangdong. [Costfoto/NurPhoto via AFP].](/gc4/images/2025/06/04/50658-c919-600_384.webp)
Por Waldaniel Amadis |
SÃO PAULO – Um potencial acordo para vender até quatro aeronaves C919 para a brasileira Total Linhas Aéreas (TLA) está revelando obstáculos críticos para a ambiciosa empresa estatal chinesa Commercial Aircraft Corporation of China (Comac).
Embora o negócio continue condicionado a certificações fundamentais, expõe as vulnerabilidades estruturais da Comac: uma rede de apoio global limitada, pouca experiência operacional fora da China e sérias preocupações em relação à sua capacidade de fornecer peças sobresselentes e serviços pós-venda competitivos.
As negociações, atualmente em fase avançada, poderão fazer da TLA, que se dedica a voos de carga e charter, a terceira operadora internacional a adquirir o C919, avião de fuselagem estreita desenvolvido pela Comac.
Em setembro de 2023, a Reuters noticiou que a GallopAir, com sede em Brunei, fez uma encomenda de 15 aeronaves C919 e 15 aviões ARJ21 no ano anterior, numa iniciativa amplamente interpretada como um gesto de alinhamento estratégico com Pequim.
Por sua vez, a TransNusa da Indonésia se tornou, em 2023, a primeira companhia aérea estrangeira a operar o ARJ21-700. A empresa colocou em operação três jatos regionais com capacidade para até 90 passageiros. Esta utilização marcou os primeiros passos comerciais da Comac fora do mercado chinês.
As conversações com a Comac estavam em curso há meses e incluíam um acordo de financiamento apoiado pelo Banco de Desenvolvimento da China, revelou o acionista majoritário da TLA, Paulo Almada, em setembro passado.
O acordo cobriria até 80% do preço de compra, com empréstimos reembolsáveis ao longo de 10 a 12 anos. Cada avião está avaliado em cerca de US$ 90 milhões.
Horizonte incerto
Apesar do otimismo da TLA, o futuro do C919 nos mercados internacionais permanece incerto.
Sem a certificação das entidades reguladoras internacionais, a TLA pretende operar o avião em voos charter ao abrigo do modelo “Aircraft, Crew, Maintenance and Insurance” (ACMI), uma estratégia comum de leasing utilizada para satisfazer a procura sazonal. A formação dos pilotos e dos mecânicos será realizada na China.
As implicações para o mercado brasileiro seriam primeiramente externas, avalia Adalberto Febeliano, engenheiro aeronáutico e especialista em aviação.
“Azul e Latam operam o Airbus A320 nesse segmento, e a Gol o Boeing 737 Max 8. O C919 concorreria diretamente com esses modelos europeus e americanos, oferecendo uma alternativa tecnicamente viável para a maioria das rotas brasileiras”, disse ele ao Entorno.
Mas a capacidade da Comac para prestar apoio técnico sólido continua sendo uma preocupação fundamental.
“Resta saber até que ponto a empresa chinesa está preparada para manter operações complexas, especialmente em termos de fornecimento de peças, serviços de engenharia e formação”, acrescentou Febeliano.
As companhias aéreas brasileiras que operam aeronaves de fuselagem estreita mantêm normalmente frotas de cerca de 150 unidades.
“Só em formação de pilotos, são necessários cerca de 2.000 comandantes e co-pilotos, com aproximadamente 18 tripulações em instrução por semana. Isso exige, por si só, pelo menos quatro simuladores de voo por companhia aérea”, explicou.
O C919 não representa uma ameaça imediata para o fabricante brasileiro de aviões Embraer, afirma Febeliano. “O E195-E2 [da Embraer] é ligeiramente menor do que o A320 ou o 737 Max 7, mas oferece um custo de assento-milha comparável, o tornando ideal para mercados de baixa densidade”.
Dependência e atrasos na Europa
É pouco provável que o C919 entre no mercado europeu antes de 2028. Em entrevista ao L'Usine Nouvelle em abril, Florian Guillermet, diretor executivo da Agência de Segurança da Aviação da União Europeia, declarou que a certificação da aeronave levaria “de três a seis anos”.
Este prazo representa um revés para a Comac, que esperava obter a aprovação europeia até 2025. Com essa porta temporariamente fechada, o fabricante chinês está mudando seu foco para mercados emergentes como o Brasil.
A Agência Nacional de Aviação Civil (ANAC) do Brasil confirmou ao Entorno que não recebeu nenhum pedido formal para certificar o C919, acrescentando mais uma camada de complexidade ao negócio.
Outro grande obstáculo para o C919 é sua alta utilização de componentes fabricados fora da China, muitos deles provenientes de fornecedores americanos e europeus. Desde motores e aviônica a sistemas de controle de voo, a dependência da aeronave em tecnologia estrangeira pode complicar tanto os esforços de certificação quanto a confiabilidade operacional no exterior.
Embora a China tenha como objetivo reduzir esta dependência, mais de metade do valor da aeronave ainda provém de tecnologias estrangeiras.
A situação se agravou com o aumento das tensões comerciais. O atual governo dos EUA suspendeu as exportações de tecnologias essenciais para a China, incluindo motores de aviões, semicondutores e software para design de chips.
A Comac começou a sentir a pressão. A suspensão das licenças de exportação de motores, softwares e outros componentes críticos atrasou os esforços de certificação internacional e prejudicou os processos de produção e manutenção do C919, complicando ainda mais suas ambições globais.