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China usa jornalistas estrangeiros para disseminar propaganda do Partido Comunista
PCC convidou estrategicamente jornalistas latino-americanos a viajar à China para "treinamento de mídia", tática que amplifica a propaganda de Pequim e molda as percepções internacionais.
![Policial levanta as mãos para impedir que jornalistas gravem do lado de fora de um tribunal de Xangai, onde a jornalista chinesa Zhang Zhan foi julgada em dezembro de 2020. Zhang completou sua sentença em maio de 2024, mas foi presa novamente quatro meses depois. [Leo Ramirez/AFP]](/gc4/images/2024/10/18/47890-journos-600_384.webp)
Por Manoel Ossato |
RIO DE JANEIRO -- Um fórum que reuniu cerca de 100 veículos de comunicação e think tanks latino-americanos e chineses gerou preocupações entre jornalistas e ativistas de direitos humanos com relação à liberdade de expressão.
O Fórum de Cooperação de Mídia China-América Latina e Caribe de 2024 foi coorganizado pelo Diário do Povo, porta-voz do Comitê Central do Partido Comunista Chinês (PCC), e pelo jornal brasileiro de negócios e economia Monitor Mercantil.
Em consonância com a mensagem do PCC, Hu Guo, vice-presidente do Diário do Povo, apresentou uma perspectiva positiva do evento.
"Nos últimos 10 anos, nós nos focamos em melhorar nossa estrutura e produzimos um grande número de matérias que mostram a vitalidade da China e da América Latina", disse Hu Guo no evento, de acordo com a estatal China Global Television Network (CGTN).
![Pessoas leem um jornal chinês com cobertura jornalística dos exercícios militares da China em Taiwan, em Pequim, em 24 de maio. [Jade Gao/AFP]](/gc4/images/2024/10/18/47895-afp__20240524__34tu469__v1__highres__chinataiwanmilitarydrills-600_384.webp)
Realizado em 16 de outubro no Rio de Janeiro, o fórum proporcionou a Pequim uma oportunidade para promover o seu modelo dejornalismo controlado e censurado pelo estado, segundo críticas.
"Contar bem a história da China"
O esforço chinês remonta a muitos anos.
Em agosto de 2013, o presidente chinês, Xi Jinping, discursou na Conferência Nacional de Trabalho de Propaganda e Ideologia, delineando sua visão para propaganda e comunicação internacional.
Ele enfatizou a importância de "contar bem a história da China" e pediu um foco maior na "propaganda externa" para moldar as narrativas globais.
Na última década, um número crescente de jornalistas da América Latina e do Caribe visitou a China, às custas de Pequim, para programas de "treinamento" de mídia.
Os instrutores desses cursos incentivam os visitantes a se alinharcom as perspectivas do PCC sobre assuntos internacionaise adotar as práticas predominantes no jornalismo chinês, de acordo com vários participantes desses programas de treinamento.
"Contar bem a história da China" envolve essencialmente replicar a propaganda do PCC.
Os instrutores incentivam os participantes a produzir apenas matérias positivas sobre as instituições de seus países, em vez de defender a responsabilização, comprometendo assim a independência da imprensa na América Latina.
Bilhões gastos
Durante um treinamento no final de agosto, a China recebeu mais de 200 representantes de 191 veículos de comunicação de 76 países, de acordo com o Global Times do país asiático.
No palco, autoridades do PCC destacaram os supostos benefícios da Iniciativa do Cinturão e Rota (ICR) em infraestrutura — proposta por Xi em 2013 — para os países participantes.
As autoridades enfatizaram a "cooperação de ganha-ganha", uma narrativa promovida pela imprensa chinesa controlada pelo Estado.
Mascríticas ao ICRe aos empréstimos predatórios de Pequim — rotulados como "diplomacia da armadilha do endividamento" — se estendem ao exterior.
Em setembro de 2023, o Departamento de Estado dos EUA emitiu um relatório acusando o governo chinês de subverter a imprensa global.
"A China está manipulando a imprensa global por meio de censura, coleta de dados e compras secretas de veículos de notícias estrangeiros", resumiu a Reuters na época.
Pequim suprime discordâncias em relação à sua narrativa sobre Taiwan, direitos humanos e economia chinesa, segundo o relatório.
O Departamento de Estado criticou os gastos anuais de bilhões da China para manipular informações estrangeiras e incentivar a divulgação dos supostos feitos do regime chinês.
"Se não forem controlados, os esforços de Pequim podem resultar em um futuro no qual a tecnologia exportada pela RPC [China], governos locais cooptados e o medo de retaliação direta de Pequim produzirão uma forte contração da liberdade de expressão global", disse o Departamento de Estado.
"Um grande teatro"
O PCC investe recursos consideráveis, embora não divulgados, para hospedar correspondentes estrangeiros nessas visitas altamente organizadas e controladas, que visam controlar a narrativa sobre questões delicadas.
Não é raro que as autoridades levem jornalistas e diplomatas estrangeiros para regiões comoXinjiang e o Tibete, onde Pequim enfrenta alegações de violações de direitos humanos e até genocídio.
As visitas são extremamente controladas e seguem um itinerário rigoroso, durante o qual representantes do governo chinês bombardeiam os visitantes com dados oficiais para persuadi-los de que reportagens negativas representam perseguição da imprensa ocidental.
"Tudo parece um grande teatro, onde o texto exaltando os feitos do Partido se repete à exaustão, inclusive pelas ‘pessoas comuns’ selecionadas para conversar conosco", disse ao Entorno um repórter que pediu anonimato.
"A gente émonitorado o tempo todo; não tem como escapar do roteiro e explorar a região para ter uma visão do que é a realidade local", acrescentou.
Comprometendo a privacidade dos jornalistas
Pequim parece estar definindo cada vez mais territórios como "sensíveis", informou o Clube dos Correspondentes Internacionais na China (FCCC, em inglês) em abril, após uma pesquisa com membros.
"Um número crescente de jornalistas encontrou problemas em regiões que fazem fronteira com a Rússia (79%), países do Sudeste Asiático (43%) ou em regiões etnicamente diversas, como a Mongólia Interior (68%)."
"Oitenta e cinco por cento dos jornalistas que tentaram reportar de Xinjiang em 2023 tiveram problemas", disse a FCCC.
Impressionantes 99% dos entrevistados concordaram que "as condições de trabalho jornalístico na China raramente ou nunca atendem aos padrões internacionais de cobertura jornalística".
Enquanto isso, repórteres suspeitam que Pequim esteja violando a privacidade deles.
"A maioria dos entrevistados tinha motivos para acreditar que as autoridades possivelmente ou definitivamente comprometeram seu WeChats (81%), telefones (72%) e/ou colocaram grampos de gravação de áudio em seus escritórios ou casas (55%)", acrescentou a FCCC.
A China abriga um dos "ambientes de mídia mais restritivos do mundo e seu sistema de censura mais sofisticado, especialmente online", disse a Freedom House em seu relatório nacional de 2024 sobre a China.
Agora, ela se esforça para exportar esse modelo à América Latina.