Direitos Humanos
Mesquitas trancadas e campos de detenção ofuscam estímulo da China ao turismo em Xinjiang
Partido Comunista Chinês quer que os visitantes acreditem que Xinjiang é próspera e livre, mas persistem sinais de opressão religiosa e os notórios campos de detenção para muçulmanos.
Por Entorno e AFP |
KASHGAR, China – Viajantes chineses lotam os mercados da antiga Kashgar, comendo espetinhos de cordeiro e absorvendo a fortemente mercantilizada cultura uigur – parte de um esforço do governo para transformar a problemática Xinjiang em um paraíso turístico.
Kashgar, que já foi um oásis da Rota da Seda, esteve recentemente no centro de uma grande campanha antiterrorismo de Pequim na região noroeste.
Os arredores da cidade ainda estão repletos de instalações que o Partido Comunista Chinês (PCC) chamava de escolas profissionalizantes, mas investigadores e ativistas dos direitos uigures descrevem como campos de detenção ilegais para muçulmanos.
Estima-se que 1 milhão de uigures, hui e outras minorias muçulmanas tenham sido detidos na região de Xinjiang desde 2017, em meio a uma campanha governamental que a comunidade internacional chama de “genocídio”.
![Duas mulheres passam de scooter por uma mesquita trancada com o slogan “Ame o Partido Comunista, ame o país” em Kashgar, na região de Xinjiang, China, em 14 de julho. [Pedro Pardo/AFP]](/gc4/images/2023/09/07/43857-33qf98z-highres-600_384.webp)
Relatórios, investigações e revelações detalharam tortura generalizada, detenções arbitrárias e violações dos direitos religiosos e reprodutivos dos muçulmanos.
As acusações incluem trabalho forçado, esterilização compulsória, estupro sistemático e destruição de locais culturais e islâmicos uigures.
"Ninguém tem permissão para orar"
Agora, após anos de ataque às tradições e ao estilo de vida uigures, o PCC injeta dinheiro para promover uma versão aprovada pelo Estado de sua cultura e atrair viajantes nacionais e estrangeiros.
Em uma visita recente de jornalistas da AFP à antiga Kashgar, milhares de turistas lotaram barracas de rua que vendiam lenços de seda e naan (pão típico) quente.
Outros visitantes tiravam selfies em frente à amarelada fachada da Mesquita Id Kah.
"A cidade velha é o coração e a alma de Kashgar, com uma história longa, cultura rica e arquitetura única", disse uma guia turística uigur enquanto conduzia visitantes, principalmente do grupo étnico Han, majoritário na China, pelas ruas estreitas.
"Muitos turistas gostam tanto que voltam, abrem negócios... e vivem aqui ao lado de outras minorias étnicas, como uma grande família."
Dezenas de lojas aderiram à tendência das "fotos de viagem" feitas por um fotógrafo profissional, na qual os turistas chegam a pagar mais de 1.500 yuans (US$ 205) para vestir véus com lantejoulas e posar pela cidade com roupas uigures.
A celebração do traje tradicional ocorre apesar da proibição imposta pelas autoridades, há alguns anos, ao uso de véus pelas mulheres uigures e de barbas longas pelos homens.
Olhando-se para além das atividades turísticas, outros sinais apontavam para uma perda de tradições e estilos de vida dos residentes uigures.
Uma pilha de escombros jazia no local do Grande Bazar de Kashgar, próximo à periferia da cidade antiga.
O grande mercado, onde milhares de comerciantes vendiam tecidos, especiarias e outros produtos, teria sido destruído pelas autoridades no ano passado.
Grande parte da cidade velha também foi demolida e reconstruída nas últimas décadas como parte do esforço de desenvolvimento do governo.
A própria mesquita Id Kah está praticamente fechada ao culto desde 2016. Os muçulmanos uigures estão proibidos de rezar no templo, exceto durante o Ramadã e em outros dias sagrados islâmicos e para fins de propaganda, de acordo com as autoridades locais.
Em junho, as autoridades chinesas começaram a vender bilhetes aos turistas para visita à mesquita.
A polícia de Kashgar disse à Rádio Free Asia que o templo estava aberto a visitantes, mas não para fiéis.
“Não sei quanto dinheiro cada visitante paga, mas tenho certeza de que as pessoas têm permissão para entrar na mesquita”, disse um oficial que não quis se identificar, como é prática normal.
Ele confirmou que “ninguém está autorizado a rezar” dentro da mesquita, a menos que seja permitido pelo governo.
"Publicidade positiva"
As autoridades chinesas há muito tempo veem o turismo como uma forma de desenvolver Xinjiang, rica em recursos, mas historicamente empobrecida.
No mês passado, o presidente Xi Jinping fez um apelo para "reforçar a publicidade positiva e mostrar a nova atmosfera de abertura e autoconfiança de Xinjiang".
O departamento regional de turismo planeia gastar mais de 700 milhões de yuans (US$ 96 milhões) em 2023, mais do dobro do seu orçamento pré-pandemia em 2019.
Um conjunto de novos projetos foi anunciado em Xinjiang, de hotéis de luxo a áreas de campismo, rotas ferroviárias e parques de atividades.
Entre esses projetos estão acordos de 12,6 bilhões de yuans (US$ 1,72 bilhão) com marcas hoteleiras ocidentais, como Hilton, Sheraton e InterContinental, informou em junho o jornal People's Daily, administrado pelo PCC.
O turismo também oferece a Pequim uma oportunidade de responder às críticas a suas políticas na região.
“As pessoas parecem oprimidas? A cidade parece uma prisão a céu aberto como os EUA dizem?”, postou uma jornalista pró-governo em julho no Twitter – a plataforma rebatizada de X está bloqueada na China –, com imagens dela jantando e dançando com moradores de Kashgar.
A China rejeitou um relatório da Organização das Nações Unidas que detalha abusos “graves” que podem constituir “crimes contra a humanidade” e criticou as acusações de “genocídio” feitas pelos EUA.
O Ministério das Relações Exteriores disse à AFP que em Xinjiang “a vida das pessoas está melhorando continuamente, os espaços culturais estão prosperando e a religião é harmoniosa e acolhedora”.
Mesquitas fechadas
Mas, fora do circuito turístico, na cidade majoritariamente uigur de Yengisar, repórteres da AFP viram uma placa em um cemitério proibindo "atividades religiosas" islâmicas, como ajoelhar-se, prostrar-se, orar com as palmas das mãos voltadas para cima e recitar as escrituras.
A mesma placa permitia certas oferendas para o Festival Qingming, normalmente observado pelos han, mas não pelos uigures.
Em torno de uma dezena de mesquitas em outras cidades e vilarejos ao redor de Kashgar foram encontradas trancadas e em ruínas.
Algumas pareciam ter tido minaretes e outras marcações islâmicas removidas, e muitas exibiam o mesmo slogan do governo: "Ame o país; ame o partido".
Em Kashgar, não mais que duas dúzias de homens uigures, na maioria idosos, foram vistas entrando na Mesquita Id Kah para as preces da tarde de sexta-feira, número muito inferior ao de turistas -- uma mudança radical em relação aos milhares de fiéis que se reuniam há uma década.
Três outras mesquitas comunitárias em um raio de algumas centenas de metros foram fechadas durante a visita da AFP e, a poucos passos de uma delas, funcionava uma loja que anunciava produtos para adultos.
Esses fechamentos eram em grande parte considerados “desnecessários até a recente onda de repressão” que começou em 2017, disse Rian Thum, pesquisador de história uigur da Universidade de Manchester, na Grã-Bretanha.
"A destruição de locais religiosos... faz parte de um conjunto maior de políticas que estão transformando a paisagem e desconectando a cultura uigur da geografia" de Xinjiang, afirmou Thum à AFP.
As lembranças mais nítidas das políticas de Pequim ainda são ocultadas na periferia de Kashgar, onde estariam localizados muitos dos supostos campos de concentração.
Embora alguns pareçam ter sido convertidos ou abandonados, outros parecem ainda estar em funcionamento – e geram desconforto ao governo quando expostos.
"Não faça fotos!" gritou uma mulher não identificada em um carro sem identificação que seguiu a AFP até um complexo indefinido em uma área industrial de aspecto sombrio, a uma hora de carro da cidade.
"Isso não é permitido por aqui."