Política
Ferrovia bioceânica Brasil-China causa indignação no Peru, excluído das conversas
China e Brasil planejam uma ferrovia transcontinental até o porto peruano de Chancay. Mas não discutiram com o Peru sobre a ameaça às suas terras indígenas, à biodiversidade e à soberania amazônica.
![O enviado chinês, Xing Wenju, assina em Brasília um memorando com o secretário nacional de ferrovias, Leonardo Ribeiro, e a diretora da Infra S.A., Elisabeth Braga, para avaliar um novo corredor ferroviário ligando o Brasil ao porto de Chancay, no Peru. [Ministério dos Transportes do Brasil]](/gc4/images/2025/07/10/51122-bioceanico-600_384.webp)
Por Entorno |
Um novo impulso para a construção de uma ferrovia transcontinental ligando o porto brasileiro de Ilhéus ao porto peruano de Chancay, operado pela China, desencadeou uma tempestade política e diplomática no Peru.
Embora a rota projetada passe por mais de 1.000 km de território peruano, ninguém consultou Lima nem a convidou para as negociações sino-brasileiras iniciais.
As negociações em Brasília culminaram na assinatura de um memorando de entendimento sino-brasileiro em 7 de julho.
O ministro das Relações Exteriores do Peru, Elmer Schialer, confirmou sem rodeios a exclusão do país em 7 de julho: "Não temos mais detalhes do que vocês".
![Uma delegação de 11 engenheiros da China Railway Group Limited (CREC) e do Ministério dos Transportes da China visitou Porto Sul, em Ilhéus, Brasil, em 16 de abril para avaliar o andamento da Ferrovia de Integração Leste-Oeste (FIOL), um segmento-chave do proposto Corredor Bioceânico que liga o Atlântico ao Pacífico através do Amazonas e do porto de Chancay, no Peru. [Agência Brasil]](/gc4/images/2025/07/10/51123-bioceanico2-600_384.webp)
Enquanto autoridades brasileiras comemoravam o envolvimento da China State Railway Group nos estudos de viabilidade da ferrovia, a indignação com a exclusão do Peru irrompia em Lima. A exclusão não é um descuido menor: a rota proposta atravessaria algumas das áreas de maior biodiversidade da Amazônia. Elas abrigam comunidades indígenas, incluindo aquelas de povos isolados.
A ideia de um projeto de infraestrutura de tão grande escala avançar sem ao menos uma notificação ao Peru levanta preocupações não apenas em relação à viabilidade do projeto, mas também à posição diplomática do Peru.
Excluído das conversas
Schialer tentou minimizar a situação, classificando-a como uma questão entre China e Brasil. Ele disse que o Peru avaliaria sua participação "quando o projeto chegar à fronteira peruano-brasileira". Mas não convenceu os críticos.
O ex-ministro das Relações Exteriores do Peru Miguel Rodríguez Mackay descreveu as declarações de Schialer como "mortificantes" e "vergonhosas", dizendo que ecoavam a dinâmica da era colonial, em que países poderosos ditavam o destino do Peru.
"Como é possível que o Peru não saiba nada sobre o que a China e o Brasil pensam em fazer?", questionou ele, durante entrevista à rádio Exitosa em 8 de julho. "Essas coisas, na minha opinião, são intoleráveis na política externa."
Para Rodríguez Mackay, é incompreensível que uma ferrovia que deveria cruzar mais de 1.000 km de território peruano possa avançar sem sequer um convite formal ao Peru para participar das negociações.
Ameaça ambiental se aproxima
Além da rejeição diplomática, o projeto envolve implicações ambientais imensas. A ferrovia cortaria a floresta tropical intocada na região de Madre de Dios, no Peru, e na Amazônia brasileira, incluindo reservas protegidas e territórios indígenas.
Em 2015, a Sociedade de Antropologia das Terras Baixas da América do Sul alertou que a ferrovia poderia ter "consequências devastadoras" para tribos isoladas e uma das regiões de maior biodiversidade da Terra.
Ativistas e grupos ambientalistas agora temem que o projeto possa abrir caminho para a grilagem de terras, o aumento do tráfico de drogas e o desmatamento, tudo isso alimentado pela pressão para exportar matérias-primas para a China. A ferrovia exigiria estradas de acesso, estações e outras infraestruturas que fragmentariam os ecossistemas e agravariam os impactos.
O Cerrado, no Brasil, outro ponto crítico ecológico já ameaçado pela monocultura de soja que alimenta a China, pode enfrentar ainda mais destruição se o corredor ferroviário ganhar forma.
Nenhuma voz em solo nacional
A ferrovia bioceânica não é uma ideia nova. Concebido na década de 1950, o projeto foi retomado e paralisado diversas vezes. Em 2014, a China ofereceu cerca de US$ 100 bilhões para reativar o projeto, mas preocupações ambientais levaram o Brasil a suspendê-lo um ano depois.
Agora, a ideia surgiu novamente. Uma delegação chinesa de engenheiros visitou obras importantes de infraestrutura no Brasil em abril, incluindo a Ferrovia de Integração Leste-Oeste (FIOL), na Bahia, o possível ponto de partida da ferrovia com destino ao Pacífico, que termina em Chancay.
Na época, o Peru também ficou de fora das discussões.
A ironia é difícil de ignorar: embora o destino final da ferrovia fique em solo peruano, Lima não recebeu nenhuma comunicação oficial sobre os termos do acordo, a rota proposta ou quaisquer avaliações técnicas ou ambientais.
Rodríguez Mackay classifica essa omissão como uma falha diplomática da mais alta ordem. "Quando ouvi essas afirmações, perguntei: mas o que está acontecendo aqui com o Peru?"
No momento, Brasil e China impulsionam o projeto, enquanto o Peru observa de fora. Mas cresce a pressão por parte da população peruana, de ambientalistas e de tribos indígenas.
O silêncio diplomático pode custar caro e, mais uma vez, em nome do desenvolvimento, a soberania do Peru e a sobrevivência das comunidades amazônicas estão em jogo.