Ambiente

China compra soja brasileira de fazendas desmatadas, fazendo uso indevido de 'empréstimo verde'

Cofco obteve empréstimo vinculado a metas ambientais, mas comprou grãos de fornecedores ligados ao desmatamento no Cerrado e na Amazônia.

Bombeiro e avião combatem incêndio durante ações contra desmatamento na região do Pantanal, Brasil. [Agência Brasil]
Bombeiro e avião combatem incêndio durante ações contra desmatamento na região do Pantanal, Brasil. [Agência Brasil]

Por Andreia Lobato |

RIO DE JANEIRO – As compras chinesas de soja brasileira proveniente de terras desmatadas são um deboche ao compromisso assumido pelo país com a proteção do meio ambiente.

A estatal chinesa Cofco, uma das maiores compradoras de soja no Brasil, anunciou em julho de 2019 que obteve um empréstimo de US$ 2,3 bilhões a taxas de juros favoráveis ​​— o maior financiamento vinculado a objetivos de sustentabilidade já concedido a um trader de produtos agrícolas.

A Cofco retribuiu o favor comprando soja de áreas desmatadas.

A enorme presença da Cofco

A Cofco (China National Cereals, Oils and Foodstuffs Corporation) é uma das maiores estatais da China no setor de alimentos e agronegócio.

Bombeiros e voluntários combatem incêndio na Floresta Amazônica em Apuí, no estado do Amazonas, Brasil. [Michael Dantas/AFP]
Bombeiros e voluntários combatem incêndio na Floresta Amazônica em Apuí, no estado do Amazonas, Brasil. [Michael Dantas/AFP]

No Brasil, onde atua desde 2014, a Cofco se tornou o maior comprador de açúcar, milho e principalmente soja. A empresa compra, processa e exporta grãos brasileiros para abastecer a China.

As operações da Cofco no Brasil foram fundamentais para a obtenção do chamado empréstimo verde, coordenado pelo BBVA da Espanha e respaldado por outras 19 instituições financeiras.

O empréstimo de US$ 2,3 bilhões prevê redução de taxas de juro em troca do compromisso da Cofco em rastrear a origem da soja comprada no Brasil e ajudar a combater o desmatamento.

Mas uma investigação da Rainforest Investigations Network e da organização Repórter Brasil, divulgada em janeiro de 2023, mostra que, embora tenha se beneficiado do financiamento, a Cofco comprou soja cultivada em áreas desmatadas.

As compras foram feitas por meio da Nutrade Comercial Exportadora, subsidiária da gigante agroquímica suíça Syngenta. Ao atuar como fornecedor indireto, a Nutrade possibilitou que a Cofco cumprisse tecnicamente os termos do empréstimo ​​— ao mesmo tempo que traía o seu propósito.

Com uso de imagens de satélite e dados públicos, a investigação analisou compras feitas pela Cofco em 2021 de soja cultivada em áreas recentemente desmatadas em Mato Grosso. A reportagem expôs falhas graves no controle da cadeia de abastecimento e lançou dúvidas sobre o compromisso da empresa com os objetivos de desmatamento zero.

Violação da Moratória da Soja

Entre as propriedades citadas na reportagem estão as fazendas União I e União II, do agricultor João Luiz Lazarotto. Essas áreas, utilizadas para cultivo de soja, milho e algodão, forneciam grãos para a Cofco através da Nutrade.

As notas fiscais analisadas pela reportagem confirmam as transações.

As fazendas ficam dentro da Amazônia Legal do Brasil ​​— uma região definida pela legislação para promover a proteção ambiental e o desenvolvimento sustentável. As áreas foram desmatadas depois de 2008, segundo dados de satélite da plataforma MapBiomas.

Essa data é emblemática: sob a Moratória da Soja, acordo histórico assinado em 2006 pelas principais empresas do agronegócio, por ONGs e pelo governo brasileiro, as empresas se comprometeram a não comprar soja cultivada em terras desmatadas na Amazônia após julho de 2008, ainda que o desmatamento tenha sido legalmente autorizado.

Como signatária, a Cofco não deveria ter adquirido soja dessas fazendas.

Desmatamento no Cerrado

A investigação também revelou o caso de um fornecedor da Cofco que opera no Cerrado ​​— a vasta savana tropical do Brasil, que abrange as regiões Centro e Nordeste e é o segundo bioma mais desmatado do país, atrás apenas da Amazônia.

Em março de 2021, a Uggeri Agropecuária, empresa com sede em Nova Mutum, no estado de Mato Grosso, fez diversas entregas de soja ao armazém da Cofco situado na cidade vizinha Lucas do Rio Verde.

Documentos analisados ​​pelos jornalistas mostram que um contrato assinado em novembro de 2020 entre a Cofco e a intermediária Nutrade previa o fornecimento de 1.300 toneladas de soja da Uggeri.

A empresa é proprietária da Fazenda Ranchão, que produz grãos e cereais. Na propriedade contígua Fazenda Ranchão II, o órgão ambiental do estado de Mato Grosso (Sema-MT) embargou três áreas agrícolas em agosto de 2015 devido a infrações ambientais.

Apesar das sanções, imagens de satélite mostram que a Uggeri continuou plantando nas áreas embargadas e abastecendo a Cofco.

Essas ações constituem uma violação aos compromissos sociais e ambientais assumidos publicamente pela Cofco, uma vez que o contrato entre a empresa chinesa e a Nutrade permaneceu ativo ​​— sugerindo que, durante uma parte significativa do acordo, soja de origem irregular entrou na cadeia de abastecimento da Cofco, segundo especialistas consultados para a investigação.

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