Economia
Aumento das exportações de alimentos para China coincide com fome alarmante: 43 milhões de pessoas afetadas na América Latina
Foco da América Latina em atender ao mercado chinês estimula a sobre-exploração da terra, aprofunda crises sociais e ambientais e agrava a fome.
![Trabalhador descarrega soja em um caminhão após colheita em uma lavoura em Salto do Jacuí, Brasil. [Sílvio Ávila/AFP]](/gc4/images/2023/11/15/45003-brazil_fao-600_384.webp)
Por Giselle Alzate e AFP |
SANTIAGO – A fome afetou cerca de 43,2 milhões de pessoas na América Latina e no Caribe em 2022, cerca de 6,5% da população da região, informou a Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO) em 9 de novembro.
Embora tenha havido uma melhora em relação a 2021, o número é superior às estatísticas pré-COVID, representando um acréscimo de cerca de 6 milhões de pessoas com fome na comparação com 2019, afirmou a agência em um relatório regional sobre segurança alimentar e nutricional.
A FAO aponta a pandemia, a crise climática e a guerra na Ucrânia, além da desaceleração econômica, da inflação dos alimentos e da desigualdade de renda, como causas das dificuldades da região.
“Uma em cada cinco pessoas na região não consegue ter acesso a uma dieta saudável, e a desnutrição em todas as suas formas, incluindo baixa estatura em crianças, deficiências de micronutrientes e obesidade, continuam sendo um grande desafio”, afirma o relatório.
![Miguel Barros, de 11 anos, que chamou a polícia por causa da fome, brinca com seu irmão mais novo, Gael, em sua casa em Belo Horizonte, no Brasil. Os brasileiros se mobilizaram para doar alimentos para a família. [Douglas Magno/AFP]](/gc4/images/2023/11/15/45020-hunger1-600_384.webp)
A prevalência da insegurança alimentar moderada ou grave na América Latina e no Caribe – 37,5%, ou cerca de 247,8 milhões de pessoas – foi superior ao percentual global de 29,6%, destaca o documento.
A fome piora em casa
O forte aumento das exportações de alimentos da América Latina para a China nos últimos anos desencadeou conflitos ambientais e sociais, agravando ainda mais a fome na região.
Ao longo de três décadas, a exportação de soja latino-americana para a China aumentou 50 vezes, segundo Óscar Bazoberry, coordenador-geral do Instituto para o Desenvolvimento Rural da América do Sul (IPDRS).
“A China é o maior importador mundial de soja, respondendo por mais de 60% do comércio global”, informou o South China Morning Post em janeiro.
A situação alimentar na América Latina é resultado das condições do mercado global e da falta de uma política consistente focada em prioridades alimentares e na saúde pública.
"O que posso afirmar, pelo que sei, é que o governo, a diplomacia e o que chamamos de 'empresas chinesas' não estão agindo de maneira proporcional ao seu nível de responsabilidade na deterioração da terra e nos conflitos sociais e ambientais na América Latina", disse Bazoberry ao Entorno.
O interesse da China está nos produtos proteicos da América Latina, como carne bovina para consumo direto e soja para alimentação animal, disse Bazoberry.
“O mercado de carne bovina e suína está cada vez mais exigente em termos de qualidade e tipos de cortes, respondendo às novas condições de consumo da população na China”, acrescentou.
Bazoberry destacou que, na última década, a China foi o destino de mais da metade da carne bovina exportada pelo Brasil, enquanto o Uruguai exportou cerca de 85% de sua produção total de carne. Os embarques para a China representaram 56% do total exportado em 2022, segundo o Instituto Nacional da Carne do Uruguai (INAC).
O coordenador-geral do IPDRS expressou preocupação com o status da América Latina como região exportadora de alimentos e com o agravamento da fome na região, conhecida como a “despensa do mundo”.
A reputação da região vem de sua contribuição significativa para a produção global de alimentos, representando 14% do total mundial, embora concentre 12% das terras aráveis e apenas 8,6% da população mundial.
Ironia
Apesar da abundante produção de alimentos, a insegurança alimentar na América Latina é uma realidade sombria.
Bazoberry avalia a situação atual como um problema estrutural com raízes nas políticas governamentais. A América Latina, afirma, priorizou se tornar o celeiro da China e vender a maior parte da sua produção de proteína animal. Para ele, essa tendência é uma situação absurda e “injusta”.
A América Latina focou sua atenção e seus subsídios principalmente no setor agroindustrial, levando à sobre-exploração da terra para atender à crescente demanda chinesa. Pequim, por sua vez, recentemente vem dando prioridade a diretrizes claras de conservação do solo. Esse contraste nas políticas expõe a disparidade nas abordagens sobre uso sustentável da terra entre a América Latina e a China.
“Quando se trata de conservação do solo, os chineses são muito rigorosos porque entendem que é um recurso vital para o futuro, para o nosso planeta”, acrescentou Bazoberry.
Países como Brasil, Argentina, Chile, Paraguai e Bolívia dependem fortemente das exportações de produtos agrícolas para a China. O ímpeto de conquistar uma fatia do enorme mercado chinês levou à destruição da fertilidade do solo e à expansão das fronteiras agrícolas, particularmente em regiões ecologicamente sensíveis, como a selva amazônica e o Gran Chaco.
Essa expansão resultou na perda de biodiversidade, representando um grande desafio ambiental para a região.