Ambiente
Megaprojeto chinês enfrenta resistência na ilha brasileira de Itaparica
Mais recente megaprojeto da China no Brasil promete avanços, mas população o acusa de passar por cima de suas terras sagradas e seus direitos.
![Projeto da Ponte Salvador-Itaparica, que atravessa a Baía de Todos-os-Santos. [Sistema Rodoviário Salvador–Ilha de Itaparica]](/gc4/images/2025/08/01/51377-brasil3-600_384.webp)
Por Entorno |
No papel, a ponte Salvador-Itaparica é uma maravilha da engenharia: uma via de 12,4 km de extensão que ligará a cidade de Salvador à Ilha de Itaparica através da vistosa Baía de Todos-os-Santos. A expectativa é que seja inaugurada entre 2029 e 2031.
Ela promete viagens mais rápidas, crescimento econômico e integração logística para o Nordeste brasileiro. Mas, para muitos, é algo completamente diferente: um projeto de infraestrutura liderado pela China, imposto de cima para baixo, que passa por cima de direitos, habitats e terras ancestrais, com pouca transparência ou responsabilização.
As empresas por trás do projeto, as estatais China Communications Construction Company (CCCC) e China Civil Engineering Construction Corporation, já construíram portos, ferrovias e pontes na América Latina.
No entanto, são alvos de acusações recorrentes de contratos pouco transparentes, danos ambientais e desrespeito às vozes locais.
O projeto Salvador-Itaparica segue o mesmo padrão preocupante.
"A gente só sabe o que vê na TV. Mas ninguém nunca veio mostrar o projeto", aponta Antônio Salvador dos Santos, 75 anos, radialista aposentado que mora perto da futura estrada de acesso à ponte, em matéria publicada em 3 de julho pela Dialogue Earth.
Santos comprou um pequeno terreno na ilha há 30 anos, plantou limoeiros e goiabeiras e esperava viver os últimos anos vendo os netos brincarem. Agora, teme que uma rodovia passe por sua propriedade, embora nenhuma autoridade tenha confirmado isso.
Estrada em solo sagrado
Embora a ponte seja destaque das manchetes, os moradores dizem que o verdadeiro perigo está na chamada "variante", uma rodovia planejada de 18 km que cortaria Itaparica para absorver o tráfego da ponte.
Ela atravessaria zonas preservadas de Mata Atlântica, manguezais, áreas úmidas e comunidades enraizadas em séculos de cultura afro-brasileira e história indígena.
Pior que a ponte é a estrada, alertaram moradores à Dialogue Earth.
“É aqui que estão os estuários e os espaços ancestrais sagrados. É uma tragédia uma estrada com veículos pesados no meio disso”, disse Rafael Carvalho, pescador, cineasta e líder da comunidade indígena Tupinambá. "A gente tira o sustento do mar porque existe essa mata, esses rios, que estão interligados ao nosso manguezal."
Outros temem o colapso ambiental. Rita de Cássia dos Santos, marisqueira, lembra-se de coletar ostras na infância com a mãe. Agora é mais difícil encontrá-las. “Se mexerem aí, acabou”, ressaltou ela na mesma reportagem.
As proteções ambientais podem ser frágeis. O principal estudo de impacto ambiental do projeto se baseou em dados de 2013–2014 e foi concluído antes da pandemia de COVID. Em 2024, o Ministério Público da Bahia alertou que as informações desatualizadas poderiam levar a danos mal-avaliados ou imprevistos.
"Já solicitamos dados atualizados e o projeto executivo muitas vezes, mas não temos resposta. Fico muito preocupada. Não é só uma ponte, é um sistema que afeta Salvador, a ilha e dezenas de cidades", salientou a promotora do Ministério Público da Bahia Cristina Seixas, que acompanha o projeto há mais de uma década, à Dialogue Earth.
Promessas quebradas e vozes ausentes
Apesar das declarações oficiais de que houve consulta às comunidades, os encontros começaram apenas na metade de 2025, quando o planejamento, a contratação e a construção já estavam em andamento. Esse atraso viola o compromisso do Brasil com a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho, que prevê o consentimento livre, prévio e informado das comunidades tradicionais.
“A única coisa que as pessoas viram foi uma imagem 3D no jornal”, reclamou Carvalho.
Em março, o governo da Bahia publicou uma portaria com diretrizes para a consulta pública, determinando que o processo fosse concluído em até 60 dias após a primeira audiência.
Consulta falsa
O líder religioso afro-brasileiro Moisés dos Palmares teme que seu Terreiro do Silêncio, local sagrado de candomblé dentro do Quilombo Tereré e parte do patrimônio cultural e espiritual afro-brasileiro nacional , seja demolido.
"Na ilha, há centenas de comunidades tradicionais. Em 60 dias esse processo vai ser concluído?" Questiona. "Parece que a ilha é só um atalho entre Salvador e o interior, mas os impactados somos nós."
O papel da China gera preocupações maiores. O Banco Mundial proibiu a CCCC de participar de projetos financiados pela instituição devido a práticas fraudulentas. Agora, a empresa chinesa lidera uma das maiores parcerias público-privadas do Brasil.
O acordo de 2020 que previa US$ 1,4 bilhão em aporte público teve seu custo aumentado: embora o valor total do contrato tenha sofrido uma pequena redução após uma renegociação firmada em junho, as contribuições públicas duplicaram.
A China, dizem os críticos, está tendo enormes lucros, enquanto os contribuintes brasileiros e a população da ilha assumem os riscos.
Engarrafamentos
Nem a cidade de Salvador está preparada para o fluxo de trânsito, disse o arquiteto urbanista Paulo Ormindo, professor titular aposentado da Universidade Federal da Bahia, à Dialogue Earth.
Ele alerta para o risco de engarrafamentos.
"Itaparica vai virar uma extensão urbana de Salvador (...), e o impacto disso não está planejado", afirmou.
Todos concordam que o sistema de balsa entre Salvador e Itaparica está ultrapassado, segundo Rafael Carvalho.
Mas esse consenso não significa abraçar a destruição desenfreada em nome do progresso.
“A gente precisa ter futuro, mas estamos sendo expulsos do nosso próprio território", protestou o líder indígena.
"A ponte pode até passar, mas nós vamos resistir”, concluiu.