Segurança
A promessa-fantasma do aeroporto de Punta Huete
Empresa chinesa CAMCE não investiu um único dólar no megaprojeto nicaraguense anunciado por Ortega como um futuro centro aéreo para a América Latina. Aeroporto civil ou ativo militar?
![Autoridades nicaraguenses e representantes da CAMCE da China assinaram o contrato do Aeroporto Internacional de Punta Huete em outubro de 2023, em Pequim. A cerimônia foi conduzida pelo presidente da CAMCE, Wang Bo, e pelo ministro dos Transportes da Nicarágua, General Óscar Mojica. [El 19 Digital]](/gc4/images/2025/06/23/50891-nicaragua1-600_384.webp)
Por Roberto Orozco B. |
SAN JOSÉ, Costa Rica -- Dez meses após o governo da Nicarágua realizar a cerimônia de inauguração do Aeroporto Internacional de Punta Huete, a construção pouco avançou.
A estatal chinesa CAMC Engineering Co., Ltd. (CAMCE), selecionada para executar o projeto, ainda não entregou um único dólar do investimento prometido.
A constatação vem do último relatório de execução orçamentária, referente ao primeiro trimestre de 2025 e publicado pelo Ministério da Fazenda. O documento, analisado pelo Entorno, confirma que a CAMCE não ativou nenhum dos fundos comprometidos para a "Tranche A" do aeroporto, uma etapa estimada em US$ 249,5 milhões que representa apenas parte do plano de US$ 500 milhões do governo Ortega, com conclusão prevista para 2028.
O governo promoveu o aeroporto como um carro-chefe da modernização: uma pista de 3.600 metros de extensão com certificação 4F (indicando que o aeroporto pode receber aeronaves de grande porte como o Airbus A380-800 e o Boeing 747-8), capacidade para 60.000 toneladas de carga, 25.000 voos por ano e 3,5 milhões de passageiros.
![Autoridades nicaraguenses e executivos da CAMCE da China participam da cerimônia de lançamento da pedra fundamental para a reconstrução do Aeroporto Internacional de Punta Huete, em 15 de agosto, em San Francisco Libre, Manágua. O evento marcou o início oficial das obras de um dos principais projetos de infraestrutura do regime de Ortega. [El 19 Digital]](/gc4/images/2025/06/23/50892-nicaragua2-600_384.webp)
Localização: 58 km a nordeste de Manágua.
Em agosto, durante um ato público, Laureano Ortega Murillo, filho do casal de ditadores Daniel Ortega e Rosario Murillo, e porta-voz "de facto" do regime para investimentos chineses, anunciou que a CAMCE assumiria a totalidade do projeto. Desde então, os avanços foram mínimos.
"O aeroporto está avançando muito lentamente. Há movimentação de maquinário, mas não no ritmo esperado. O dinheiro chinês não chegou", disse ao Entorno um engenheiro civil que trabalha no projeto e pediu anonimato por medo de represálias.
Nicarágua paga; China retém
Enquanto a CAMCE protela, a Nicarágua já investiu US$ 104 milhões em dinheiro público no aeroporto como parte do financiamento de contrapartida nacional exigido, de acordo com o relatório de liquidação do orçamento de 2024.
O contrato, assinado pelo consultor jurídico do Ministério da Fazenda Sender Power Vallejos, estipulava que o governo deveria adiantar 20% do custo total para acionar o primeiro desembolso chinês.
No entanto, a CAMCE ainda não agiu. O Entorno entrou em contato com o Ministério dos Transportes e Infraestrutura, o proprietário formal do projeto, para pedir explicações, mas obteve resposta. O regime nicaraguense proíbe instituições estatais de fornecer informações à mídia independente.
Punta Huete não é o único projeto apoiado pela China que está no limbo.
Na última década, Ortega assinou diversos acordos com empresas chinesas em setores como energia, infraestrutura e agricultura. Poucos se concretizaram.
O exemplo mais emblemático é o Grande Canal Interoceânico, um megaprojeto de US$ 50 bilhões concedido ao extinto Grupo HKND, liderado pelo empresário chinês Wang Jing. Anunciado pela primeira vez em 2013, o canal deveria rivalizar com o Canal do Panamá, mas nunca passou da fase de planejamento.
Enquanto isso, a dívida da Nicarágua com a China continua crescendo. Dados oficiais a estimam em mais de US$ 900 milhões, e projeções sugerem que poderia chegar a US$ 1,2 bilhão se forem aprovados novos empréstimos com empresas como Zhengzhou Coal Mining Machinery Group e China Iconic Technology Co., Ltd.
Aeroporto civil ou ativo militar?
Diante dos atrasos, críticos começam a questionar o verdadeiro propósito de Punta Huete.
Em uma reportagem da agência de notícias EFE publicada em 25 de agosto, figuras da oposição como Pedro Joaquín Chamorro, filho da ex-presidente Violeta Barrios de Chamorro, argumentaram que a instalação poderia ter dois objetivos: civil e militar.
"A viabilidade comercial é questionável. A Nicarágua não precisa de um aeroporto desta magnitude. A única explicação plausível é seu uso estratégico," disse Chamorro.
A história corrobora essa teoria. A pista de pouso original de Punta Huete foi construída pela União Soviética durante a Guerra Fria, com o objetivo de acomodar caças MiG-25. Voos civis nunca ocorreram naquela infraestrutura.
"É possível que a CAMCE esteja atrasando os desembolsos devido ao caráter sensível do projecto", especulou o engenheiro consultado pelo Entorno. "Não há como comprovar isso, mas não vejo outra razão para o descumprimento do contrato."
Uma pista sem decolagem
O silêncio da CAMCE se encaixa em um padrão. A empresa já enfrentou acusações de corrupção no Nepal, na Venezuela, na Bolívia e no Equador.
Em abril, o The New York Times informou que uma comissão parlamentar nepalesa havia iniciado uma investigação sobre irregularidades na construção do Aeroporto Internacional de Pokhara, outro projeto liderado pela CAMCE. Avaliado em US$ 216 milhões, o aeroporto atualmente recebe apenas um voo por semana e apresenta graves deficiências técnicas e financeiras.
Na Venezuela, registros judiciais revelaram que a CAMCE e outras empresas chinesas pagaram US$ 100 milhões em propina a funcionários do regime de Hugo Chávez. Na Bolívia, a empresa foi alvo de um escândalo envolvendo Gabriela Zapata, ex-namorada do ex-presidente Evo Morales, por alegações de tráfico de influência.
Apesar da inação da CAMCE, o dinheiro da Nicarágua já foi gasto. O que antes foi apresentado por Ortega como uma porta de entrada para a integração regional ainda é pouco mais do que uma pista de pouso e algumas máquinas em um campo remoto a nordeste de Manágua.
Até o momento, Punta Huete permanece como um monumento às promessas não cumpridas e a uma parceria com a China que produziu mais propaganda do que resultado.