Sociedade

Exploração de ouro apoiada pela China inunda cidades bolivianas e polui rios

No pólo de mineração de Tipuani, investidores chineses permanecem distantes e difíceis de alcançar. Mas sua presença silenciosa está transformando a região, levantando questões, tensões e um sentimento de divisão cada vez mais profundo.

Fidel Veliz atravessa o que costumava ser sua rua em Tipuani, Bolívia. Sua casa está submersa, mas ele volta para cuidar de seus gatos, que estão presos no telhado. A extração desregulada de ouro, apoiada por capital chinês, transformou o rio e afogou a cidade. [Yenny Escalante Flores]
Fidel Veliz atravessa o que costumava ser sua rua em Tipuani, Bolívia. Sua casa está submersa, mas ele volta para cuidar de seus gatos, que estão presos no telhado. A extração desregulada de ouro, apoiada por capital chinês, transformou o rio e afogou a cidade. [Yenny Escalante Flores]

Por Yenny Escalante Flores |

TIPUANI, Bolívia – A água chega ao peito, em alguns dias, ao pescoço. Fidel Veliz, um veterinário de 36 anos, hesita antes de cada passo na água turva e estagnada que agora cobre o que costumava ser sua rua.

A casa dele está debaixo d'água. Seus gatos, agora vivendo no telhado, são a única razão para que ele retorne a cada dia e meio, trazendo comida, carinho e lembranças da vida que perdeu.

A cena se passa em Tipuani, uma cidade rica em ouro a oito horas da capital da Bolívia, La Paz.

Antigamente apelidada de “Capital do Ouro”, Tipuani tem sido dominada por operações de mineração sem controle, a maioria liderada por cooperativas bolivianas apoiadas por capital estrangeiro, principalmente chinês.

Mulher observa Tipuani, na Bolívia, ainda submersa meses depois de as fortes chuvas terem provocado o transbordamento do rio local. A destruição, alimentada pela exploração de ouro apoiada por capital chinês, deixou bairros inteiros debaixo d'água. [Sergio Mendoza]
Mulher observa Tipuani, na Bolívia, ainda submersa meses depois de as fortes chuvas terem provocado o transbordamento do rio local. A destruição, alimentada pela exploração de ouro apoiada por capital chinês, deixou bairros inteiros debaixo d'água. [Sergio Mendoza]
Vista aérea de Tipuani, na Bolívia, onde a extração de ouro, apoiada por capital chinês, deixou a cidade debaixo d'água desde o início do ano, após fortes chuvas e o desmoronamento das margens dos rios afetadas pela extração de ouro. [Sergio Mendoza]
Vista aérea de Tipuani, na Bolívia, onde a extração de ouro, apoiada por capital chinês, deixou a cidade debaixo d'água desde o início do ano, após fortes chuvas e o desmoronamento das margens dos rios afetadas pela extração de ouro. [Sergio Mendoza]

As chuvas torrenciais e o desvio imprudente do rio Tipuani por parte dos mineiros inundaram bairros, destruíram casas e provocaram o desmoronamento de infraestruturas. Mais de 70% dos 7.600 habitantes da cidade foram afetados.

Os moradores locais dizem que estão se afogando na negligência do governo, na devastação ambiental e nas consequências de um sistema de mineração caótico que beneficia muito mais os investidores estrangeiros do que os cidadãos da região.

'Estamos vivendo no esgoto'

Numa manhã de janeiro deste ano, o rio transbordou sem aviso prévio. Em poucos minutos, casas de adobe desmoronaram, lojas foram devastadas e alguns moradores perderam a vida.

“A minha casa, o meu negócio, tudo ruiu no ano passado”, conta Roger Viadez, presidente do bairro central de Tipuani. Ele conseguiu evacuar sua família apenas alguns segundos antes de as paredes cederem. Passou dois meses dormindo na praça da cidade.

Ele reconstruiu a casa com empréstimos bancários, apenas para vê-la inundada novamente meses depois. “É uma situação que nos deixa furiosos. As autoridades sabem exatamente o que está acontecendo e, mesmo assim, não fazem nada”, desabafou ao Entorno.

Viadez agora navega por um caldo tóxico de água do rio e esgoto sem tratamento a bordo de uma jangada feita de uma mesa, cordas e blocos de espuma. A água não é apenas do rio; está misturada com esgoto em estado bruto. Tipuani não tem sistema de saneamento, por isso, quando chove, as águas residuais correm de volta para a cidade.

"Não é só água, estamos vivendo na merda, no esgoto; muitas pessoas já estão ficando doentes", disse ele.

Mão estrangeira nas ruínas

Tipuani tem cerca de 15 cooperativas de mineração de ouro registradas. Mas os residentes apontam para seis em particular que estabeleceram parcerias com investidores estrangeiros, principalmente da China, mas também da Colômbia e da Alemanha. Estas parcerias, muitas vezes informais, são responsáveis por alguns dos piores danos ambientais.

“Os chineses fazem acordos privados com as cooperativas bolivianas, às vezes por cinco ou dez anos”, disse Rufino Chambi, chefe dos conselhos de bairro de Tipuani. “Mas se as atividades fracassam, eles rompem os convênios.”

De acordo com Chambi, estes investidores ficam com cerca de 70% dos lucros do ouro, deixando apenas 30% para a parte boliviana.

“Acho que deveriam deixar alguma coisa, pelo menos uma avenida pavimentada ou uma grande obra”, declarou ao Entorno.

Viadez, o chefe do bairro central de Tipuani, acrescentou que estas empresas nem sequer são oficiais. “Não se registram, não pagam impostos e não investem na comunidade. Apenas extraem o ouro, levam-no para seu país e vão-se embora”, disse ele.

Máquinas pesadas, escavadeiras, caminhões basculantes e retroescavadeiras rugem dia e noite a poucos passos das casas dos moradores.

O escoamento maciço de sedimentos também elevou o leito do rio à mesma altura que a cidade.

Agora, sempre que chove, o rio não se limita a transbordar: corre diretamente para as ruas de Tipuani.

Ao longo do caminho, eram visíveis vários locais de exploração mineira. Alguns cidadãos chineses podiam ser vistos nos campos de trabalho.

A maioria são investidores que se isolam da comunidade local, reforçando a sensação de uma presença estrangeira distante e obscura nesta região mineira boliviana.

Águas que sobem, frustração que cresce

Os habitantes de Tipuani começaram a reagir. Em um fim de semana recente, membros do Comitê Cívico e da Comissão de Supervisão Social da cidade tentaram confrontar uma nova empresa de mineração, a Lin Qin SRL. Mas a companhia cancelou a reunião no último minuto.

As pessoas estão cansadas de serem ignoradas, disse a líder local, Gimena Pérez. “Não somos contra a exploração mineira, mas ela tem de ser responsável.”

Pérez, como muitos outros, perdeu sua casa nas inundações. Ela apontou para os carros submersos e para as casas em ruínas. “Não podemos viver do ouro. As gerações futuras precisam entender isso.”

Em maio, um jovem de 17 anos morreu quando seu veículo caiu num poço de mineração abandonado.

“O caminho não era para passar por ali”, acusou Norma Espejo, a tia enlutada. “A culpa é das cooperativas. Há anos que lutamos contra elas.”

'Durmo em uma mesa'

O prefeito de Tipuani, Fernando Vera, confirmou que 15 cooperativas estão registradas na área. Mas por trás delas, segundo ele, estão pelo menos seis grandes investidores estrangeiros, a maioria deles chineses.

“Eles vêm, trabalham e vão embora. Pedimos os planos de trabalho, mas eles quase nunca os cumprem. E quando tentamos intervir, são as próprias pessoas que os defendem”, disse Vera ao Entorno.

Membro de uma cooperativa e empresário, Vera explica que tem tentado fazer cumprir a lei, mas recebe pouco apoio. “É como nadar contra a corrente."

A cidade gastou quase US$ 75.000 em bombeamento de emergência, mas a água continua chegando. Os gigantescos poços de mineração se transformaram em fontes constantes de escoamento. Uma ponte já foi arrastada.

Ouro e ruína

Os habitantes de Tipuani não estão pedindo que a mineração pare; eles precisam dela. Quase 90% da cidade depende da extração de ouro para sobreviver. O que eles exigem é regulamentação, responsabilidade e infraestrutura básica.

“Só queremos que eles tapem os buracos e não deixem feridas abertas”, acrescentou Viadez.

Enquanto o Comitê Cívico caminha pelo que outrora foram bairros, um jipe passa em alta velocidade. Quatro jovens chineses ocupam o interior, observando por trás de vidros fumê. Raramente são vistos nas minas.

Ironicamente, as casas alugadas por alguns desses chineses foram inundadas, revelam os habitantes locais.

É quase impossível fotografar as minas. Os trabalhadores intervêm logo. Mas os estragos são visíveis por todo o lado: casas submersas, estradas bloqueadas e habitantes abandonados, enfrentando sozinhos a subida das águas.

Veliz, o veterinário, mandou a companheira e o filho para La Paz. Agora dorme no que restou de um instituto técnico que foi danificado, mas não destruído.

“Fiquei para trás para cuidar dos gatos. Eles são tudo o que me resta aqui”, diz ele.

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