Ciência e Tecnologia

Observatório chinês no Atacama é suspeito de uso militar e não científico

Projeto pode ter consequências profundas para a segurança, a posição diplomática e, mais importante, a soberania do Chile.

Homem olha para o céu no Observatório Europeu do Sul, no monte Paranal, na província de Antofagasta, deserto do Atacama, Chile. [Rodrigo Arangua/AFP]
Homem olha para o céu no Observatório Europeu do Sul, no monte Paranal, na província de Antofagasta, deserto do Atacama, Chile. [Rodrigo Arangua/AFP]

Por Alicia Gutiérrez |

SANTIAGO - A iniciativa da China de construir um complexo de observação espacial no deserto do Atacama, no Chile, pode estar mais alinhada com uma estratégia militar mais ampla do que com o seu objetivo científico declarado.

Esta preocupação se tornou evidente em um relatório da agência independente de inteligência britânica Grey Dynamics, publicado em primeiro de janeiro, e em um artigo na revista Newsweek em dezembro.

Ambas as fontes alertam para os riscos da presença crescente da China em locais estratégicos a nível mundial como parte da sua agenda militar.

Ao mesmo tempo, analistas e acadêmicos advertem que o projeto pode ter implicações significativas para a segurança, a diplomacia e a soberania do Chile.

Christian Moni Bidin (à esquerda), diretor do Parque Astronômico de Ventarrones, e o Dr. Zhenyu Wu, astrônomo chinês e representante do projeto, em maio passado na cerimônia que marcou o início dos trabalhos de pavimentação e construção de plataformas para um acampamento e complexo de telescópios 90 km a sudeste de Antofagasta. [Universidade Católica do Norte (UCN)
Christian Moni Bidin (à esquerda), diretor do Parque Astronômico de Ventarrones, e o Dr. Zhenyu Wu, astrônomo chinês e representante do projeto, em maio passado na cerimônia que marcou o início dos trabalhos de pavimentação e construção de plataformas para um acampamento e complexo de telescópios 90 km a sudeste de Antofagasta. [Universidade Católica do Norte (UCN)

O Parque Astronômico de Ventarrones é um complexo de 25 quilômetros quadrados estrategicamente situado no deserto do Atacama, a cerca de 90 km de Antofagasta, próximo aos morros Paranal e Armazones, a uma altitude de 2.800 metros acima do nível do mar.

'Longas e difíceis' negociações

As autoridades conceberam o projeto em novembro de 2016, durante a visita do presidente chinês, Xi Jinping, ao Chile.

Sua inauguração está prevista para 2026.

Para chegar a um acordo, foram necessários oito anos de conversações “longas e difíceis” e até “um pouco estranhas”, segundo Christian Moni Bidin, diretor do Parque Astronômico de Ventarrones da Universidade Católica do Norte (UCN), citado pela Newsweek.

Bidin atribuiu esta demora principalmente às restrições de acesso ao terreno que a China pretendia impor.

“É razoável que os chineses tenham dito: 'OK, eu construí. É meu, eu que decido'. Mas ao governo eles não podem dizer: 'Este espaço é chinês e não é permitida a entrada'”, disse Bidin.

Em janeiro de 2023, as autoridades assinaram finalmente o acordo de colaboração entre a UCN e os Observatórios Astronômicos Nacionais da China (NAOC), parte da Academia Chinesa de Ciências.

A China gastou cerca de US$ 80 milhões na construção e equipagem do local, que incluirá cerca de 100 telescópios.

O construtor é a China Construction Engineering Corporation Chile SpA, uma subsidiária da China State Engineering Construction – uma entidade ativa na construção militar, como observou a Newsweek.

Estratégia militar, ciência não

Embora Santiago e Pequim tenham chegado a um acordo sobre o projeto há quase nove anos e este seja importante para o Chile como um centro de astronomia global, os detalhes são elusivos.

O website do NAOC contém apenas um único artigo relevante de 2016, que descreve a visita de Xi a Santiago e a assinatura de um memorando de entendimento para uma “base de observação”.

O sigilo em torno do projeto suscita sérias preocupações, disse Jorge Sanz, analista internacional e acadêmico da Universidad del Desarrollo, em Santiago.

“Embora este projeto tenha começado durante o governo de Michelle Bachelet (...), parece que a partir daí não se deram conta do que estava em jogo, porque este projeto em particular não é muito divulgado no Chile e isso deveria ser um problema”, explicou ele.

Em entrevista ao Entorno, Sanz descreveu a iniciativa como “uma questão de segurança, científica, militar, política, diplomática e, mais importante, de soberania para o Chile”.

Este observatório não deve ser visto isoladamente, mas sim como parte de uma estratégia global mais ampla da China, afirmou Sanz, especialista em ciências militares.

Ele faz uma associação entre este projeto e a visão geopolítica de longo prazo do Partido Comunista da China, que tem como objetivo o domínio global até 2049 – o centenário da sua vitória na guerra civil chinesa.

“Temos de ligar isto ao plano estratégico da China para se tornar a principal potência espacial do mundo até 2049. Estabelecer uma presença aqui torna o Chile parte dessa estratégia – quer queiramos quer não”, advertiu ele.

Militarização do espaço

Sanz destacou a necessidade de uma avaliação crítica e abrangente do projeto, que, como muitos outros, se enquadra na Iniciativa do Cinturão e Rota da China. O Chile, um parceiro cultural e comercial fundamental para Pequim na América do Sul, desempenha um papel cada vez mais estratégico nesta expansão.

“Não se trata apenas de um caso de cooperação científica”, alertou Sanz. “Tendo em conta os movimentos geopolíticos e econômicos mais amplos da China na América Latina, não há dúvida de que terá aplicações militares.”

O analista destacou o interesse crescente de Pequim na militarização do espaço, citando o Livro Branco da Defesa da China de 2015, que considera explicitamente o espaço um domínio militar.

“Isto faz parte da agenda militar chinesa. Todas estas instalações, incluindo os observatórios, estão ligadas ao Exército de Libertação Popular (ELP). O mesmo se aplica ao controle sobre os portos. Há uma conotação militar oculta sob o pretexto de cooperação econômica e científica”, concluiu Sanz.

Uma avaliação semelhante é feita na Newsweek por Liza Tobin, ex-diretora para a China do Conselho de Segurança Nacional dos EUA.

“O que estamos vendo no Chile é a estratégia chinesa clássica. Estabelecer instalações científicas aparentemente benignas que podem servir múltiplos objetivos estratégicos. Estes observatórios não se limitam a seguir as estrelas – podem monitorar satélites, recolher informações e apoiar operações espaciais militares”, disse ela.

Pequim disfarça deliberadamente as funções militares destas instalações sob o pretexto de cooperação científica internacional, acusou Tobin, agora diretor sênior do Projeto de Estudos Especiais Competitivos.

Mesmo os parceiros de pesquisa da China frequentemente desconhecem o verdadeiro alcance destas atividades, acrescentou Tobin.

Construção de uma rede de vigilância global

O observatório será o quinto pólo ultramarino da rede global de vigilância do céu da China, concebido para “analisar completamente” todo o céu dos hemisférios sul e norte de meia em meia hora, de acordo com as “necessidades estratégicas nacionais” da China”, segundo a Grey Dynamics.

“Este observatório representa um dos esforços mais recentes da China para se estabelecer como uma superpotência espacial”, afirmou a Grey Dynamics em seu relatório.

Neste sentido, as futuras operações do complexo astronômico de Ventarrones podem pôr em risco não só a segurança do Chile, mas também a de toda a região, ressaltou Sanz.

As condições que a China procurou para a construção deste observatório no Chile são semelhantes às da Estação Espacial Distante, construída do outro lado da fronteira, na província argentina de Neuquen, na Patagônia.

Esta instalação na Argentina suscitou um debate sobre a falta de transparência do seu processo de concessão e as suas operações secretas.

“Se eu disser às pessoas que o que aconteceu em Neuquen vai acontecer aqui – em que há um espaço chinês onde ninguém pode entrar – as pessoas vão dizer: ‘Isso acontece na Argentina, mas não vai acontecer no Chile’”, explicou Sanz.

A investigação da Newsweek destaca as restrições impostas pela China e alimenta preocupações crescentes sobre os verdadeiros objetivos do projeto em solo chileno.

“Na maioria das cooperações espaciais no Chile, que são construídas e pagas por observatórios ou governos estrangeiros, o parceiro local recebe 10% do tempo de observação. Mas a universidade (chilena) disse que só teria direito a duas noites por mês em Ventarrones”, segundo a Newsweek.

Os chilenos poderão ter ainda menos noites de acesso se os cientistas chineses estiverem envolvidos em “projetos científicos importantes do NAOC”.

Os chineses serão proprietários de todos os edifícios, infraestruturas, telescópios, sensores, da estrada principal de acesso ao local e de todos os dados recolhidos, disseram fontes de inteligência à Newsweek.

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