Sociedade

Na Buenos Aires impactada pela inflação, amantes do tango mandam a tristeza embora

Dificuldades crescentes na Argentina estão levando pessoas a buscar refúgio como parceiros de dança em locais conhecidos como "milongas".

Casal dança tango na milonga "Cañon", na casa de tango La Tierra Invisible, em Buenos Aires, na Argentina. Em média, a cidade registra 30 milongas por noite, sete dias por semana. [Luis Robayo / AFP]
Casal dança tango na milonga "Cañon", na casa de tango La Tierra Invisible, em Buenos Aires, na Argentina. Em média, a cidade registra 30 milongas por noite, sete dias por semana. [Luis Robayo / AFP]

Por AFP |

BUENOS AIRES -- A grave crise econômica na Argentina não impede que os amantes do tango busquem as notas nostálgicas do piano e da concertina em um número cada vez menor de pistas de dança na capital do país.

Para muitos, na verdade, as dificuldades são exatamente o que os leva a buscar consolo nos braços de um parceiro de dança em locais chamados de "milongas", ao ritmo de um gênero musical fortemente associado à luta das classes trabalhadoras.

"Na milonga, você sente uma conexão consigo mesmo e com os outros. É um investimento para o coração e o espírito", explica a dançarina de tango Andrea Censabella, 36 anos, frequentadora assídua da pequena casa de tango "La Tierra Invisible", situada em um bairro de classe média de Buenos Aires.

"Para mim, é uma prioridade... Então, [a crise econômica] não me impede de nada, por enquanto", disse ela à AFP.

O bandoneonista Julio Coviello e o pianista Nicolas Di Lorenzo, membros do grupo de tango contemporâneo Duo Cañon, fazem serenata para os amantes do tango, que dançam na milonga "Cañon", na casa de tango La Tierra Invisible, em Buenos Aires. [Luis Robayo / AFP]
O bandoneonista Julio Coviello e o pianista Nicolas Di Lorenzo, membros do grupo de tango contemporâneo Duo Cañon, fazem serenata para os amantes do tango, que dançam na milonga "Cañon", na casa de tango La Tierra Invisible, em Buenos Aires. [Luis Robayo / AFP]

A casa é pequena -- apenas cerca de 20 metros quadrados -- e abriga uma dezena de dançarinos. As mesas são improvisadas com portas antigas apoiadas sobre cavaletes.

O local oferece uma ou duas sessões por semana e cobra uma entrada de cerca de 400 pesos (menos de R$ 4,80) .

Muitas milongas na capital tiveram de fechar as portas por conta da inflação espiral que atingiu 95% no ano passado.

Cada vez menos pessoas podem contratar música ao vivo.

Mas dezenas de milongas de baixo custo continuam a atrair os fiéis ao tango, e a capital argentina continua a abrigar cerca de 30 delas para a classe média do país todas as noites da semana -- das luxuosas às informais, das tradicionais às "diferentonas", para todos os estilos e bolsos.

"A milonga sobrevive porque é necessária. A crise sempre existiu e sempre existirá", disse à AFP o pianista de tango Nicolas di Lorenzo, cogestor da "La Tierra Invisible".

A inflação acumulada nos últimos 12 meses na Argentina atingiu 143%, informou o órgão oficial do país em 13 de novembro, a apenas alguns dias da eleição presidencial na qual o preocupante cenário econômico será um fator decisivo.

Assolada pela pior crise econômica em décadas, a Argentina irá encarar uma escolha incomum neste domingo (19 de novembro): eleger o atual ministro da Economia, Sergio Massa, que lida com uma inflação de três dígitos e uma pobreza crescente, ou o novato antissistema Javier Milei, que deseja acabar com o Banco Central e o peso argentino -- adotando o dólar como moeda oficial.

Povo paga o que pode

"Em suas letras, o tango sempre refletiu as crises e o sofrimento da classe trabalhadora" em um país que já encarou o colapso financeiro, acrescentou o historiador Felipe Pigna.

Um dos tangos mais populares, "Yira Yira", foi escrito por Enrique Santos Discepolo e fala sobre o sofrimento generalizado que ocorreu após o colapso financeiro de Wall Street em 1929.

Ele conta a história de alguém sem esperanças e sem "mate" -- uma infusão de ervas muito popular na Argentina -- que perambula pela cidade com sapatos desgastados em busca de dinheiro e comida.

"Os tangos sociais de Discépolo se atualizam a cada crise. Ouvimos tangos de quase 100 anos atrás que infelizmente ainda são relevantes", disse Pigna à AFP.

Em algumas das milongas de Buenos Aires, a entrada de cerca de R$ 25 foi reduzida pela metade ou até eliminada para quem não pode pagar.

Há também eventos gratuitos ao ar livre como o "La Otra" (A Outra), realizados à sombra de árvores ou na praça próxima ao parlamento -- onde os participantes dançam sob o olhar dos sem-teto acampados ao redor.

"Estamos aqui para oferecer um espaço livre e inclusivo onde possamos dançar tango sem grandes gastos... porque, agora, as pessoas estão com dificuldades para fazer investimentos", disse Valentin Rivetti, dançarino e instrutor de tango de 24 anos.

"Nós passamos o chapéu e as pessoas depositam o que querem, o que podem."

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