Direitos Humanos
A repressão na Rússia atinge níveis sem precedentes
Detenções, interrogatórios, buscas e prisões ocorrem quase todos os dias no país, dizem observadores.
![Policiais detêm manifestante durante um protesto contra a invasão da Ucrânia pela Rússia em São Petersburgo, na Rússia, em 27 de fevereiro de 2022. [Sergei Mikhailichenko/AFP]](/gc4/images/2023/11/02/44840-repressions_2-600_384.webp)
Por Olha Chepil |
KIEV – Em uma tentativa de sufocar opiniões divergentes provocadas pela guerra na Ucrânia, a repressão dos cidadãos por parte do Kremlin atingiu níveis sem precedentes, afirmam ativistas de direitos humanos.
Desde os primeiros dias da invasão da Ucrânia pela Rússia, há 18 meses, uma onda de repressão teve início também dentro da Rússia.
Nesse período, quase 20.000 russos foram presos em razão de sua posição antiguerra, sendo que alguns foram processados criminalmente, informou o OVD-Info, grupo independente de defesa dos direitos humanos e da imprensa, em 24 de agosto.
"Vimos repressão em massa na Rússia de Stalin. Estamos agora vendo repressão direcionada na Rússia", disse Daria Korolenko, advogada e analista da OVD-Info que está temporariamente no exílio.
![Daria Apakhonchich, artista e ativista feminista que se mudou para Tbilisi, na Geórgia, cria histórias em quadrinhos antiguerras. [Instagram]](/gc4/images/2023/11/02/44841-repressions_3-600_384.webp)
![Mulher vê, no computador, a funcionária dissidente do canal de TV russo Channel One Marina Ovsyannikova entrando no estúdio da TV Ostankino, em Moscou, em 15 de março de 2022, durante o noticiário noturno de maior audiência na Rússia. [Alexandre Nemenov/AFP]](/gc4/images/2023/11/02/44842-32679jp-highres-600_384.webp)
“(São) mais de 700 réus em processos criminais que se tornaram vítimas por se opor à guerra, presos políticos, muitos processos administrativos e a cada dia a lista de ‘agentes estrangeiros’ aumenta”, disse ela ao Kontur.
A repressão do Kremlin ainda não atingiu o ponto em que possa ser chamada de repressão em massa, segundo Korolenko, mas caminha nessa direção.
"Embora, por enquanto, eles não estejam executando dissidentes e líderes da oposição, estão aplicando sentenças muito longas", disse Alexei Baranovsky, advogado baseado em Kiev e porta-voz da Legião da Liberdade da Rússia e da oposição russa.
“O regime do [presidente russo Vladimir] Putin ainda não atingiu o fundo do poço. Quando a situação se tornar insustentável para o regime do Kremlin, eles ultrapassarão o último obstáculo. E então (...), mais cedo ou mais tarde, eles restabelecerão a pena de morte", disse Baranovsky ao Kontur.
"Preso por qualquer coisa"
Os tribunais russos condenaram recentemente pelo menos 16 réus em processos criminais, de acordo com o OVD-Info.
Entre estes, estão Ruslan Leviyev, o fundador da Equipe de Inteligência de Conflitos (CIT), e o jornalista investigativo Michael Nacke, ambos condenados à revelia a 11 anos de prisão em agosto.
O Kremlin também declarou a CIT uma organização “indesejável” e proibiu suas atividades no país.
Mikhail Afanasyev, editor-chefe do jornal Novy fokus (Novo Foco), recebeu em setembro uma sentença de cinco anos e meio de prisão. Ele também foi proibido de trabalhar como jornalista por dois anos e meio após sua libertação da prisão.
Ioann Kurmoyarov, ex-monge-sacerdote da Igreja Ortodoxa Russa que conduzia um canal no YouTube chamado “Paróquia Ortodoxa Virtual”, foi condenado a três anos de prisão em agosto e está proibido de publicar na internet por dois anos.
Em seus vídeos, Kurmoyarov expressou sua oposição religiosa à guerra travada pela Rússia na Ucrânia.
Todos os réus foram considerados culpados por divulgar “histórias falsas” ou “mentirosas” sobre as forças armadas da Rússia com base nas leis de censura adotadas pela Duma Federal em março de 2022, poucos dias após o início da guerra contra a Ucrânia.
Mais recentemente, na quarta-feira (4 de outubro), um tribunal condenou à revelia a jornalista exilada Marina Ovsyannikova por protestar contra a ofensiva de Moscou na Ucrânia.
Ovsyannikova, 45 anos, ergueu um cartaz de protesto durante um telejornal noturno ao vivo em março de 2022, mas foi condenada por outra manifestação que fez fora do Kremlin quatro meses depois.
“O tribunal condenou Ovsyannikova a oito anos e seis meses de prisão a serem cumpridos em uma colônia penal de regime geral”, informou a procuradoria de Moscou.
Em comunicado publicado na terça-feira antes da sentença, Ovsyannikova classificou as acusações contra ela como "absurdas e com motivação política".
“Eles decidiram me punir por não ter medo e por chamar as coisas pelos seus nomes”, disse.
“As pessoas estão sendo presas por qualquer coisa”, disse Baranovsky.
“Elas estão sendo colocados atrás das grades por coisas como ter uma foto errada no telefone, por exemplo”, afirmou. "Houve casos em que alguém notou o logotipo do regimento Azov [da Ucrânia] no telefone de alguém no metrô, e essa pessoa foi presa e processada."
“Havia um homem em São Petersburgo que estava fazendo cartazes contra a guerra em sua própria casa. Ele também foi detido por difamar o exército russo”, disse. "[A diretora de teatro] Zhenya Berkovich apresentou uma peça e foi presa."
Para Baranovsky, a Rússia vive tempos sombrios.
“Esta é evidentemente uma nova fase”, disse. "Antes da invasão da Ucrânia pela Rússia, isso não acontecia. Agora estamos assistindo a uma repressão extrema. Putin baixou uma cortina de ferro sobre a Rússia."
Repressão "sem precedentes"
O principal especialista da Organização das Nações Unidas (ONU) encarregado de investigar a situação dos direitos humanos na Rússia também constatou níveis “sem precedentes” de repressão no país.
Em setembro, Mariana Katzarova, relatora especial da ONU para a Rússia, apresentou seu relatório ao Conselho de Direitos Humanos da instituição.
"O nível de repressão contra a sociedade civil, os meios de comunicação independentes e, em geral, contra qualquer pessoa com voz dissidente (...) não tem precedentes na história recente", disse ela em 22 de setembro, em coletiva de imprensa em Genebra.
“A sociedade cívica na Rússia foi fechada pelas autoridades”, afirmou, acrescentando que a “repressão é muito sofisticada”, com novas leis apresentadas praticamente toda semana “para sufocar” qualquer forma de crítica ou divergência.
A situação ainda não é comparável ao nível de repressão visto durante a era estalinista da União Soviética, quando milhões de pessoas morreram nos gulags, disse Katzarova. "Mas agora é a oportunidade (...) de impedir que a situação na Rússia se deteriore até o nível das repressões estalinistas históricas neste país."
A Rússia negou o acesso de Katzarova ao seu território e se recusou até a reconhecer seu mandato, que expira neste mês -- a menos que o Conselho de Direitos Humanos da ONU vote a favor de uma resolução para estendê-lo.
Em seu relatório, Katzarova destacou o número crescente de pessoas processadas por “acusações de motivação política” desde que a Rússia iniciou sua invasão, com 513 processos desse tipo em 2022 e quase 200 desde janeiro deste ano.
Ela também lamentou que as acusações de espionagem e traição eram cada vez mais utilizadas para silenciar jornalistas.
"Cresce descontentamento com Putin"
Não sobrou quase nenhuma organização na Rússia que possa monitorar de forma independente a repressão dentro do país, afirmou Baranovsky, de Kiev. Por isso, ninguém sabe exatamente quantos russos foram condenados e presos por assumirem uma posição antiguerra.
“Todas as organizações, como as ONGs, foram banidas ou forçadas a sair do país”, disse Baranovsky.
“Muitos colegas meus, jornalistas independentes, ativistas de direitos humanos, deixaram a Rússia preocupados com sua própria segurança”, disse Korolenko, da OVD-Info. “Estamos vendo que muitas, muitas pessoas mesmo foram intimidadas, estão perdidas, não sabem o que fazer agora”.
Daria Apakhonchich, artista e feminista de São Petersburgo, organiza festivais e exposições antiguerra desde 2014.
Em 2020, as autoridades russas a colocaram na lista de "agentes estrangeiros" da imprensa e o Ministério da Justiça obrigou-a a apresentar relatórios trimestrais sobre suas atividades.
Agora, em vez de relatórios, ela envia histórias em quadrinhos antiguerra expressando seu desacordo com a guerra na Ucrânia.
“Fui multada por enviar relatórios ao Ministério da Justiça no formato errado, e houve reclamações sobre isso. Posso receber novas multas”, disse Apakhonchich.
Apakhonchich, que atualmente vive em Tbilisi, na Geórgia, disse que sonha poder voltar à Rússia.
“O mais triste, provavelmente, é que na Rússia as pessoas contrárias à guerra não dizem nada porque é perigoso”, disse ela ao Kontur. "Abrir a boca é assustador. Mas a raiva dessas pessoas está obviamente aumentando, e o descontentamento com a posição de Putin está crescendo."