Política

'Nunca mais’: indígenas bolivianos estão descontentes com socialismo

Reduto indígena boliviano de El Alto promove eleição presidencial decisiva, dividida entre conquistas passadas e uma crescente exigência de mudança.

Apoiador do ex-presidente boliviano e candidato à presidência pela coalizão 'Alianza Libre' (Aliança Livre), Jorge 'Tuto' Quiroga Ramirez, aguarda seu último evento de campanha em La Paz, em 13 de agosto. A Bolívia realizará eleições presidenciais em 17 de agosto. [Martin Bernetti/AFP]
Apoiador do ex-presidente boliviano e candidato à presidência pela coalizão 'Alianza Libre' (Aliança Livre), Jorge 'Tuto' Quiroga Ramirez, aguarda seu último evento de campanha em La Paz, em 13 de agosto. A Bolívia realizará eleições presidenciais em 17 de agosto. [Martin Bernetti/AFP]

Por AFP |

Um gigantesco navio de cruzeiro domina o horizonte na cidade boliviana de El Alto, símbolo da transformação de um bastião indígena fortemente disputado nas eleições presidenciais que serão realizadas em 17 de agosto.

O "Titanic", como é conhecido o edifício mais alto da cidade, é o mais recente de uma coleção de "cholets" – uma mistura de chalé e "chola", ou mulher indígena – neoandinos superextravagantes construídos pela burguesia Aimara da Bolívia ao longo das últimas duas décadas.

Victor Choque Flores, empresário de 46 anos que se fez sozinho, desembolsou milhões de dólares para o seu “navio num mar de tijolos”, como ele chama o palácio futurista de 12 andares, que se ergue sobre as casas de tijolos vermelhos de El Alto.

“É um pouco como nós”, diz ele, acrescentando que, embora enraizados no passado, os indígenas bolivianos estão “olhando para o futuro”.

Mulher indígena boliviana passa por carro com cartazes de campanha do candidato à presidência da Bolívia pela coalizão Alianza Unidad, Samuel Doria Medina, em La Paz. [Martin Bernetti/AFP]
Mulher indígena boliviana passa por carro com cartazes de campanha do candidato à presidência da Bolívia pela coalizão Alianza Unidad, Samuel Doria Medina, em La Paz. [Martin Bernetti/AFP]

Para muitos Aimaras, esse futuro já não inclui os socialistas atualmente no poder, que emanciparam a maioria indígena nas últimas duas décadas.

Pela primeira vez desde 2005, a expectativa é que a direita política triunfe nas eleições presidenciais, enquanto os bolivianos abandonam a esquerda em razão de uma profunda crise econômica.

Gratidão e frustração

Quase 20 anos depois de Evo Morales, um dos presidentes que ficou mais tempo no cargo na América do Sul, ter sido eleito com a promessa de uma revolução socialista, o país andino está sem recursos.

A escassez generalizada de dólares, combustível e alimentos básicos deixou alguns bolivianos em situação pior do que antes de seu mandato.

Choque Flores ainda se sente grato a Morales, o primeiro presidente indígena da Bolívia, por abrir as portas do poder à maioria de pele morena do país.

Mas El Alto, uma próspera cidade mercantil, também é cada vez mais definida pelo desejo da população de simplesmente avançar.

Ao acusar os socialistas de múltiplos “fracassos”, Choque Flores disse estar pronto para votar em “outra direção política”, sem revelar seu candidato favorito.

Caldeirão da guerra do gás

O destino da esquerda boliviana está inseparavelmente ligado a El Alto.

Morales chegou ao poder após uma sangrenta repressão a uma rebelião popular na cidade devido à exportação de gás natural, que resultou em mais de 60 mortes.

Nos anos que se seguiram, Morales enviou repetidamente seus apoiadores montanha abaixo, de El Alto até à sede do governo em La Paz, para defenderem suas causas.

Mas os ventos da mudança sopram nas ruas da metrópole andina, onde mulheres com chapéus-coco tradicionais, saias pollera com babados e xales vendem produtos enquanto teleféricos reluzentes transportam passageiros.

Por toda a cidade de um milhão de habitantes, os muros estão cobertos com a promessa do principal candidato de centro-direita à presidência, Samuel Doria Medina, de restaurar a oferta de combustível e dólares em 100 dias.

Em um sinal da importância do voto indígena, Doria Medina, que concorre lado a lado com o ex-presidente de direita Jorge Quiroga, realizou seu último comício de campanha em El Alto em 13 de agosto.

Jonathan Vega, um chef de 25 anos que participou do evento, disse contar com Doria Medina para “restaurar a estabilidade”.

Um agricultor de 72 anos, convidado a discutir a eleição na emissora de televisão e rádio local "San Gabriel" na língua aimara, também apoiou a mudança.

Arcenio Julio Tancara criticou o apelo de Morales para que os eleitores anulassem o seu voto devido à recusa das autoridades em permitir que ele concorra a um quarto mandato.

"Ele sempre pediu agitação, greves e bloqueios", afirmou.

“No início, entendemos que poderia ser necessário, mas depois vimos que não era por uma causa, mas simplesmente para que ele fosse nomeado líder”.

'Eles se desinfetam'

Morales, que é procurado sob a acusação de tráfico de uma menor de idade, tenta galvanizar a sua base alertando que os direitos indígenas duramente conquistados estarão ameaçados se políticos de pele clara e herança europeia assumirem o poder.

É uma tática que funciona bem principalmente com os aimaras rurais.

“Não queremos voltar ao século 20”, disse Matilde Choque Apaza, líder de uma associação de mulheres indígenas e rurais, usando uma bolsa colorida “aguayo” amarrada no pescoço.

Os candidatos da oposição “apertam as mãos (dos indígenas) com força” quando estão em campanha, mas quando entram nos carros ou vão para casa, “eles se desinfetam”, afirmou ela.

Ela apoiou o apelo de Morales por uma campanha em massa de votos nulos para comprometer a legitimidade da eleição.

As pesquisas mostram que cerca de 14% dos eleitores estão preparados para responder ao apelo de Morales – muito longe das três maiorias absolutas que ele obteve durante o seu governo de 2006 a 2019.

Segundo Santos Colque Quelca, 38 anos, apresentador da rádio San Gabriel, um número crescente de ouvintes jura que "nunca mais com Evo ou (o atual presidente Luis) Arce" e está transferindo seu voto para o candidato "menos ruim" da oposição.

Pablo Mamani Ramirez, sociólogo da universidade UMSA em La Paz, disse que a busca de Morales por um governo “eterno” contraria as tradições indígenas.

“A lógica do mundo andino é que o poder é alternado.”

Gostou desta matéria?


Captcha *